Assisti alguns filmes com Ricardo Darín e sem
dúvida é um ator espetacular. “O Segredo dos seus olhos” e “Relatos
Selvagens” são ótimos!
Hoje assisti a entrevista do ator argentino para
o programa “Sangue Latino” do Canal Brasil e senti um alívio muito grande com
sua fala sobre erros cometidos e a “ditadura do acerto” que temos vivido.
Mostrou-se um homem raro, sensível, inteligente e corajoso por expor seus
sentimentos dessa forma.
Darín sendo incrível! Link aqui e transcrição na integra aqui:
“Muitos anos depois, diante do pelotão de
fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota
em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de 20
casas de pau a pique e telhados de sapé construídas na beira de um rio de águas
diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes
como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de
nome e, para mencioná-las, era preciso apontar o dedo. Todos os anos, lá pelo
mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava sua tenda perto da
aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tímbalos, mostrava as novas
invenções”
Trecho de Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia
Márquez
Eric Nepomuceno: No mundo de hoje, você acha que ainda existe espaço para
as utopias?
Ricardo Darín: Sim. Sim, porque, cada vez mais, teremos mais espaço para
as utopias, ou oportunidades, porque teremos que buscar os espaços, que, cada
vez mais, serão mais restritos, mas a necessidade e a oportunidade existirão.
Estamos cercados por eletricidade, estamos cercados pela era digital.
Necessariamente, assim como ocorreu em quase todas as etapas, teremos que
voltar a certas origens para podermos nos redescobrir e entender que tudo está
muito bem, que é fantástico em muitos aspectos. Em termos científicos e de
comunicação, com todos os avanços tecnológicos, mas a sensação de que vamos
perdendo espaço em termos de contato pessoal, o cara a cara, e acho que,
necessariamente, teremos que encontrar os lugares, os espaços e as
oportunidades para podermos divagar e poder resgatar as utopias.
Tudo está muito condicionado ao resultado. Tudo está muito condicionado à
efetividade, ao acerto. Por exemplo, nossas gerações jovens atuais estão
condicionadas a uma pressão permanente, que tem sido exercida, voluntária ou
involuntariamente, sobre a juventude, no sentido de que devem acertar, devem
ser bem-sucedidos em tudo o que fizerem. Eu detesto essa visão. Detesto a ideia
de não poder errar, de não poder aprender com os erros, de não poder falhar, e
se levantarmos, nos recuperarmos e seguir em frente, porque esse é um dos motores
do templo humano. Errar.
EN: Como você lida com os erros?
RD: Eu cometo muitos erros, muitos erros. Sempre foi assim, e não
deixarei de cometê-los. Eu erro. Eu cometo erros, às vezes, de forma leve,
outras vezes, por sorte poucas, de forma contundente. Eu desfruto da
oportunidade que dei a mim mesmo, de pedir perdão, de me colocar, de poder
corrigir um erro. Estou permanentemente sob suspeita, permanentemente duvido de
mim, inclusive de coisas que, quando tinha 20 anos, tinha certeza de que eram
absolutas. Acho que o mundo está permanentemente em movimento, estamos tentando
descobrir quem somos, o que estamos fazendo neste planeta. Esta espécie
extraordinária que conformamos nos dá sinais de excelência em muitos aspectos
e, em muitos outros, não. Então eu acho que, nesse devir, estamos
constantemente tentando entender o que estamos fazendo aqui, o que vamos fazer
com tudo isto.
EN: Ricardo, você acredita no destino?
RD: Eu tive uma criação muito paternalista, muito apegada, muito ligada
ao meu pai, que era um homem que falava muito de destino. Por isso, fui criado
e me desenvolvi com frases, conceitos, ideias e visões dele que sustentavam de
uma forma muito ferrenha, porque ele se expressava bem, escrevia bem. Então
falava muito do destino, de que tudo está escrito, de que tudo vai acontecer,
de certa forma, da mesma maneira. Mas eu rejeito um pouco isso e tento
acreditar que, embora provavelmente seja verdade que como espécie, como
comunidade, como sociedade global estamos sendo levados até determinados desígnios
ou questões predestinadas. Me nego a aceitar a ideia de que não é importante o
que cada um de nós faça, em função não só do nosso âmbito, do nosso núcleo, mas
também da projeção que isso possa ter. Confio, infantilmente, muitas vezes, em
que alguém possa nos ajudar a ter um pouco mais de iluminação, de claridade,
alguém que, de repente, decida não aceitar todas as regras estabelecidas e
decida nos promover, nos estimular a revisar cada uma das regras que foram
sendo estabelecidas. Portanto, nesse sentido, como é lógico por contraposição,
acredito muito no que cada um de nós pode fazer.
EN: Um grande poeta argentino, Juan Gelman, tem um poema cujo título é
uma pergunta: “Amor que serena, termina?”
RD: Amor que serena, termina? Não sei se o amor termina, não sei
exatamente o que é o amor, mas tenho a sensação de que assim como muitos seres
vivos, vão se transformando, vão se autorreciclando e se transformando em
outras coisas, mas não sei se termina.
“No terceiro dia de chuva tinham matado tantos
caranguejos dentro de casa que Pelayo teve de atravessar o seu pátio inundado
para atirá‑los ao mar, pois o bebé recém‑nascido tinha passado a noite com
febre e pensava‑se que era por causa da pestilência. O mundo estava triste
desde terça‑feira. O céu e o mar eram uma única e mesma coisa de cinza e as
areias da praia, que em Março resplandeciam como poeira de luz, tinham‑se
transformado numa papa de lodo e mariscos podres. A luz era tão fraca ao meio‑dia
que, quando Pelayo regressava a casa depois de ter deitado fora os caranguejos,
teve dificuldade em ver o que era que se movia e gemia no fundo do pátio. Teve
de aproximar‑se muito, para descobrir que era um homem velho, que estava caído
de borco no lodaçal e que, apesar dos seus grandes esforços, não podia levantar‑se,
porque lho impediam as suas enormes asas.”
Trecho de Um senhor muitos velho com umas asas
muito grandes de Gabriel Garcia Márquez
EN: Ricardo, quais são suas perdas?
RD: São muitas, vamos perdendo e ganhando. Não gosto muito de
fazer balanços. Portanto, não me dou muito bem com contas e essas coisas, mas,
suponho que as perdas, tal como as interpreto, sejam aquelas irrecuperáveis. Já
tive muitas perdas, como todos aqueles que têm cabelos grisalhos e atravessaram
várias décadas. Não tenho certeza de que a dor é uma perda, às vezes, acho que
é um capital, mas as ausências são perdas, as ausências físicas, as ausências
atmosféricas são perdas. As perdas de oportunidades também são perdas. Nesse
aspecto, não sou um grande perdedor de oportunidades, sempre soube
aproveitá-las muito bem, o que me torna um ser quase suspeito. Muitos dizem que
tenho um ótimo olho para ver o que tenho ou não que fazer. Acho isso engraçado,
porque não sigo nenhuma regra ou norma. Simplesmente minhas entranhas me dizem
se devo ou não fazer determinada coisa. Mas tive muitas perdas. Perco muita
água, porque sou muito chorão. Choro muito. Não tenho vergonha de chorar.
Também rio muito. Sou muito exagerado com as emoções. Mas o primeiro impacto
que sinto com a sua pergunta é, pela perda de seres queridos, de seres
valiosos.
EN: Você é ator de teatro, que é uma arte efêmera. Uma noite, e a sessão
acabou; outra noite, será outra sessão. Como você lida com isso?
RD: Essa é a melhor parte. Esse é o grande presente do teatro, ter
que enfrentar um público com um plano minimamente predeterminado, ou seja,
realizar uma sessão, uma representação na qual vamos fazer um jogo combinado.
Existem vários jogos combinados. Um é que vamos ser os atores, o elenco, no
palco, vamos jogar um jogo no qual representaremos outras pessoas, imersos em
uma história que não nos pertence, de alguma forma. E o público jogará esse
jogo aceitando certas regras. Mas ninguém ainda conseguiu descobrir exatamente
por que não conseguimos deixar de sentir a vertigem e o perigo que são geradas
neste mesmo evento. Ou seja, todos nós estamos sob esse mesmo teto envolvidos
por essa atmosfera, tentando jogar esse jogo compartilhado de aceitação e entrega,
no qual ocorre uma troca de energia muito poderosa, da qual pouco se fala.
Ninguém conseguiu ainda descobrir como lidar para enfrentar a vertigem e o
perigo que isso significa. O teatro nunca será substituído. O teatro é
perigoso. Efêmero no tátil. Efêmero que concebemos como algo a acumular. Não
tenho tanta certeza que seja... Em algum lugar de todos nós, fica algo do que
ocorreu nessa noite.
EM: Do que você sente falta?
RD: Sinto falta de jogar futebol. Muita. Muita mesmo, porque
gostava muito, mas, por um problema nos ligamentos, não posso jogar, a não ser
que opere, o que não farei. Sinto falta de conversar com o meu pai. Nossas
conversas eram muito impactantes. Ele jogada um jogo muito estranho comigo
desde pequeno, que consistia em me revolucionar, em propor enigmas ou perguntas
e jogar até altas horas da noite tentando encontrar juntos uma possível
resposta. E hoje que tenho filhos grandes, com os quais tenho conversas,
discussões e polêmicas até altas horas da madrugada, o tenho permanentemente
presente, e sempre penso como seria bom se ele estivesse aí. Possivelmente se
ele estivesse em cada uma dessas discussões, meu papel seria outro, porque não
teria deixado de ser filho mesmo sendo pai. De alguma forma deixo um pouco de
ser filho e só exerço o papel de pai. Então, muitas vezes me vejo perdido nesse
papel. Não sei se assimilei completamente a ideia de ter deixado de ser filho.
Tenho um monte de perguntas que gostaria que respondessem, e me vejo
compulsivamente, obrigado a tentar encontrar respostas ou a sugerir opiniões.
Por isso, sinto muita falta daquelas conversas.
EM: Como você lida com a solidão?
RD: Eu adoro a solidão. Sou um adorador da solidão. Por alguma questão
ocidental, fomos empurrados a acreditar que a solidão é um inimigo. Então,
permanentemente, os seres, seja como for, custe o que custar, tentamos não
ficar sozinhos. E perdemos uma grande oportunidade. O diálogo interno, a
reflexão, a meditação, a investigação de nós mesmos, enfrentar nossos próprios
medos, inclusive nossas certezas, quase sempre ocorrem em atmosferas de
solidão. Como sou notívago, estou treinado e acostumado a conviver com minha
solidão. Muitas vezes, tenho que atravessar as noites só, porque minha mulher
está cansada e já foi dormir porque levanta cedo, e meus filhos têm que fazer
suas coisas, e eu me reservo o direito de ficar sozinho de noite, porque é o
momento no qual estou mais próximo de mim mesmo. Eu me descubro a mim mesmo
durante o dia, respondendo exigências urbanas e cidadãs, mas, de noite, em
solidão, é quando estou mais próximo de relembrar quem sou.
EM: Vai acontecer comigo, vai acontecer com você, chegará a hora
da viagem sem volta. Se você pudesse levar algo, o que levaria?
RD: Eu acho que, para onde vamos, se é que vamos para algum lugar,
levar alguma coisa não servirá para nada. Como meu pai dizia, temos que estar
com a bagagem o mais leve possível. Ele defendia que a propriedade não existe,
que tudo o que achamos que é nosso, antes, foi de outro e, amanhã, também será
de outro. Então a propriedade não existe. Desfrutamos do privilégio do
empréstimo temporário. Eu acho que o melhor, o máximo a que podemos aspirar é
ficar na alma dos seres com os quais tivemos contato, nos nutrimos e sentimos
essa troca, esse maravilhoso ato de generosidade recíproca de nos amarmos, nos
tocarmos dizendo que nos amamos, nos cuidando, nos protegendo e nos darmos
alegrias. Acho que é o máximo que podemos aspirar. Não levaria nada, porque
acho que não vou a lugar nenhum. Acho que o que posso desejar é desaparecer, me
desintegrar, e, se tiver muita sorte e conseguir que alguém cuide de minhas
cinzas, do que restar, as coloque debaixo de um vaso onde tenho um bonsai que
me preocupa muito, porque o abandonei por 10 dias, nos quais pegou sol o tempo
todo e quase secou. Todos falaram que tinha morrido, que não dava para fazer
nada, mas coloquei água, tirei do sol e coloquei na sombra, em ambiente úmido
e, magicamente, rebrotou. Portanto, se isso acontecer em um tempo mais ou menos
prudente, digamos, nas próximas horas, vou pedir que coloquem minhas cinzas
debaixo do bonsai, porque estou muito atento e concentrado nesse bonsai. Vou
revivê-lo, lá de cima ou daqui debaixo.